Um ensaio sobre a produção dos efeitos visuais em longa-metragem no Rio Grande do Sul.
Fazer efeitos visuais no cinema brasileiro sempre soa como algo inovador, como se fôssemos os primeiros desbravadores de uma terra ainda virgem. No entanto, assim como os portugueses, quando chegaram ao Brasil e descobriram uma civilização complexa e bem elaborada, durante minha pesquisa de dissertação de mestrado em Indústria Criativa (Feevale), constatei que os efeitos visuais são realizados há pelo menos três décadas, com projetos extremamente complexos que atendem a padrões internacionais (seja lá o que isso signifique na prática).
O que pude observar durante minha pesquisa, porém, é que projetos dessa complexidade são raramente vistos por estas bandas do sul. E quando digo complexo, refiro-me a planos mais elaborados, utilizando diversas técnicas que compõem o leque de recursos dos efeitos visuais, como computação gráfica, geração de fluidos, entre outros. Há mais de uma década, recursos de clean-up (limpeza de elementos em quadro) e inserções de telas gráficas são largamente usados. Tirando alguns filmes com tiros e outros com efeitos mais elaborados de extensão de cenário, quando falamos em longa-metragem realizado no Rio Grande do Sul, ou melhor "Um Certo Cinema Gaúcho de Porto Alegre" (2023, Boca Migotto), são poucas as iniciativas que se destacam pelos efeitos visuais. Podemos citar os filmes A Nuvem Rosa (2021), de Iuli Gerbase, Despedida (2021), de Luciana Mazeto e Vinícius Lopes, e Contos do Amanhã (2020), de Pedro de Lima Marques, este que vos fala.
Efeitos visuais, esse amplo leque de recursos realizados na pós-produção com o intuito de criar imagens que não foram possíveis durante a gravação, têm a fama de serem caros. E como o dinheiro é sempre escasso, ele acaba antes de chegar na pós-produção, limitando os criativos a poucas iniciativas mais elaboradas. São poucos os que se aventuram nessa área no sul do país. Ao longo dos meus 20 anos de carreira, dos quais 19 foram na frente de ilhas de edição trabalhando com montagem, animação 2D e 3D, computação gráfica, motion graphics, efeitos visuais e há 8 comandando a FornoFX, observei inúmeros profissionais talentosos migrarem para o sudeste do país (quando não para fora do país) em busca de melhores oportunidades de trabalho. Depois da pandemia, com a ampliação do trabalho remoto, essa migração nem sempre acontece de forma física, alguns permaneceram em suas casas mas só atendem quem paga em dólar ou euro.
Essa migração é tão frequente que dificilmente consigo montar equipes iguais de um projeto para outro. Produzimos e exportamos talentos com mais frequência do que produzimos filmes com efeitos visuais. Esse é um dos maiores desafios para a realização de obras visualmente complexas: desenvolver equipes integradas que consigam lidar com o volume e a escala dos efeitos em longas-metragens. Não é à toa que a sensação de pioneirismo paira no ar; cada novo talento encontra dificuldades em seguir os caminhos dos seus antecessores. Minha pesquisa, de certa forma, tenta iluminar esse caminho e procura criar conexões que nos auxiliem na trajetória criativa dos efeitos visuais.
Quando pensei em escrever esse texto, tinha em mente documentar os aprendizados gerados na realização do filme Uma Carta para Papai Noel (2023) do Gustavo Spolidoro, produzido pela Okna Produções, que realizei em paralelo a minha pesquisa de mestrado. Ao mesmo tempo em que pesquisava sobre o assunto, colocava em prática aprendizados e reflexões desenvolvidas durante a pós-graduação. Recebi o convite da produtora Aleteia Selonk para realizar os efeitos visuais do filme umas duas semanas depois de ter ganho o prêmio de Melhor Efeitos Visuais no Grande Prêmio do Cinema Brasileiro em 2022. Apesar de estar com a autoestima elevada pelo prêmio, sentia o peso da responsabilidade que a proposta do filme trazia. Noel, pelo roteiro, seria um dos filmes com o maior número de efeitos visuais realizados no Sul, ficando atrás apenas do Contos do Amanhã, que passou dos 500 planos de vfx. A título de comparação, o filme com o maior número de planos de efeitos visuais no Brasil, enquanto escrevo esse texto, é o Malasartes e o Duelo com a Morte (2017), com mais de 700 planos. A Nuvem Rosa (2021) ficou na marca dos 60, enquanto a Despedida (2021) gira em torno de 100 planos. Nas primeiras análises, tinha em mente que o filme facilmente iniciaria na marca dos 150 planos. Pela decupagem inicial do roteiro, e por tudo o que eu colhia de informações e organizava em planilhas, era o que tínhamos como desafio pela frente. Finalizamos com mais de 400 planos de efeitos visuais.
Como eu entrei ainda na pré-produção, tive a oportunidade de colaborar e muito no planejamento das cenas com vfx. Depois, na supervisão de efeitos no set, pude cuidar para que as cenas fossem executadas da melhor forma possível, potencializando os recursos e vendo onde investir tempo na gravação. Todo mundo que trabalha na produção audiovisual sabe que o set é um trabalho com o taxímetro ligado, na bandeira 2. Ou seja, se algo demora 30 minutos a mais para ser feito, custa muitos $$$ para ser executado. A tarefa do supervisor de vfx no set é identificar onde seria mais caro contornar o problema, no set ou na pós. Infelizmente, tudo custa tempo, e no nosso caso, tempo também é dinheiro. Se um ponto de tracking foi mal colocado, seja porque não aparece no quadro, seja porque foi mal colado mesmo no chroma e na hora de gravar está descolando, pode custar muitas horas e as vezes dias para corrigir na ilha. Um problema de 5 minutos no set pode se transformar em 30 horas na ilha. Entender isso nem sempre é fácil e um supervisor experiente pode auxiliar no set a tomar a decisão mais assertiva. Mas esse não é o primeiro aprendizado que eu gostaria de elencar aqui. O primeiro aprendizado com o papai noel é que:
1- Nenhum planejamento, por mais meticuloso que seja, é suficiente.
Nunca se dê por satisfeito com o planejamento. Tem uma decupagem prévia? Ótimo. Fez storyboard? Não? Vamos fazer! O storyboard está bem detalhado? Não? Vamos detalhar. A cena ainda não parece clara o suficiente com o storyboard? Vamos criar um animatic. Shootboard? Trecoboard? O que for necessário, esmiúce tudo. Gaste mais recursos no planejamento, tire todas as dúvidas e não dê nada por entendido até estar grafado de forma visual.
Por que eu digo isso? Porque, apesar de planejarmos bastante no Noel e de termos detalhado tudo o que acreditávamos ser necessário em planilhas, ainda tivemos algumas cenas que, na hora da gravação, foram executadas de forma diferente do que imaginávamos. Parabéns ao Spolidoro por sempre colaborar e se esforçar ao máximo para explicar tudo o que desejava, mas acredito que até mesmo para a direção do filme isso foi uma surpresa.
Uma produção envolve muitas pessoas e muitos fatores diferentes que nos levam a caminhos alternativos durante a produção. No set, decisões precisam ser tomadas. Duas cenas, em específico, nos pegaram de surpresa na pós-produção. Onde inicialmente teríamos de 5 a 6 planos, acabamos com mais de 50. Como era uma cena musical, o ritmo se definiu na montagem, e aquela variação de 5 a 6 planos foi multiplicada por 10. Ou seja, uma surpresa para o nosso fluxo de trabalho. Mesmo que um plano se repita em termos de enquadramento e composição, ele passa a ser mais um no fluxo de trabalho, aumentando o tempo de trabalho e o processamento das máquinas. Então, fica a lição: nunca se dê por satisfeito no planejamento.
2 - Soe o alarme quando sentir o cheiro da fumaça.
Eu tenho a característica de abraçar totalmente uma causa depois que ela está no meu colo. Se me responsabilizei, assumo o risco e crio alternativas para solucionar os problemas que surgirem. No caso da multiplicação dos planos, poderíamos ter antecipado isso na pré-produção, mas não ocorreu. Bola pra frente e vamos criar uma alternativa. Não sou "braço curto" (expressão que usávamos no McDonald's para quem não 'conseguia' alcançar um objeto próximo); faço o possível e o impossível para solucionar. Isso não comprometeu o trabalho, apenas aumentou nossa demanda e alterou um pouco os prazos. Mas há momentos em que precisamos ligar o sinal de alerta para tentar corrigir enquanto ainda há tempo.
No Noel, quando assumi a supervisão de efeitos, tratei de montar minha equipe e estruturar nosso trabalho a partir da montagem do filme. Conversei bastante com o montador, além da direção e produção. No entanto, senti falta de uma função que fizesse a ponte entre a montagem e os efeitos, para estruturar melhor a chegada do material. Fluxos de trabalho e pipelines, como observei na minha pesquisa de mestrado, são organizados com base nos recursos disponíveis e no conhecimento prévio de gestão operacional. Quando um projeto é muito inovador para a produtora, ele se torna um protótipo de organização futura, e funções que antes não eram necessárias talvez nem sejam percebidas como fundamentais para o desenvolvimento do trabalho.
Por mais que tentemos orientar os parceiros e clientes, temos um limite em termos de tomada de decisão. Cabe a nós alertar sobre os possíveis problemas que a ausência de determinadas funções pode gerar. No Noel, como nosso prazo era relativamente curto (quando não é?), iniciamos o trabalho antes do corte final. Acreditávamos que as cenas antecipadas não seriam modificadas (sim, fui ingênuo, eheheh). Sabíamos que haveria algumas mudanças, mas esperávamos que fossem poucas. Qual o problema disso? Alguns pequenos ajustes se acumularam, e quando temos um projeto muito grande, com uma escala muito grande, é ruim acumular tarefas; o ideal é ir diminuindo à medida que o projeto avança. Então, aprenda com Noel: soe o alarme ao menor sinal de fumaça. E isso nos leva à próxima lição.
3 - Deixe a criação livre, inclusive de problemas.
Efeitos visuais devem potencializar a obra, realizando aquilo que nenhum outro departamento conseguiu para dar vida à imaginação dos criadores. Com o Noel, conseguimos fazer isso em todas as suas aspirações. Criamos cenas incríveis, potencializamos a criatividade da direção e incentivamos os realizadores a irem além, dando um passo à frente no cinema fantástico no sul do Brasil. Como fizemos isso? Deixando a criação livre. Não limitamos a criatividade ao escopo do contrato ou ao orçamento. Criamos instrumentos capazes de potencializar a obra, repensamos fluxos de trabalho, investimos em ferramentas de IA para agilizar processos e, acima de tudo, tentamos ao máximo resolver os problemas. Minha formação é em design gráfico, e como designer, vejo o projeto sempre como um problema a ser solucionado. Os efeitos visuais são problemas a serem resolvidos, e uma forma de deixar a criação livre é abordar esses problemas com criatividade, em constantes ciclos de elaboração de soluções, testagem e aplicação. Assim, os efeitos visuais realmente conseguem cumprir seu papel de dar vida e potência à obra.
Não existem soluções prontas para problemas novos; eles precisam ser elaborados a partir do contexto local de produção. É comum que as pessoas sugiram pipelines perfeitos e fluxos de trabalho ideais, principalmente na pós-produção, como se tudo não passasse de um manual a ser seguido e que, por desconhecimento ou preguiça, não é aplicado. Contudo, a capacidade de produção é determinada pelo contexto local, com recursos locais. Recursos humanos, tecnológicos, etc. Existem inúmeros recursos disponíveis, porém, com características diferentes de outras regiões, faltando apenas uma melhor compreensão gerencial sobre como utilizá-los. Ao analisarmos projetos de efeitos visuais que se destacaram, percebemos que cada novo projeto exigiu a elaboração de uma nova estrutura. Embora essa estrutura possa ser replicada e seguida como uma linha de produção fixa, ela perde a capacidade de se diferenciar de outras produções. Isso reduz sua competitividade, tornando o preço final o único diferencial.
Projetos inovadores precisam de fluxos de trabalho inovadores, e para isso, a criatividade precisa atuar de maneira constante. Portanto, a criatividade gerencial é essencial para adaptar os recursos locais de forma eficaz, permitindo a criação de soluções únicas e competitivas.
4 - Interdisciplinaridade e Versatilidade: Atos de Resiliência e Inovação
É comum, em conversas e fóruns sobre VFX, discutir a questão do artista generalista versus o especialista. O especialista, que se aprofunda em determinada técnica, tem maior capacidade de alocação em superproduções nacionais e internacionais. Quanto mais especializado, mais requisitado ele tende a ser. Isso, porém, leva ao problema mencionado anteriormente da exportação de talentos. Para quem vende sua força de trabalho e é remunerado em euro ou dólar, não há muitas reclamações. Mas a questão é sobre resiliência e inovação. No cenário local de Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, ser um artista generalista em efeitos visuais não é apenas uma opção, mas uma condição necessária para a sobrevivência. Os projetos não seguem uma previsibilidade, seja na forma, seja no calendário produtivo (que praticamente não existe). O artista de VFX precisa aceitar os trabalhos que surgem para garantir uma renda equilibrada. Estou refletindo aqui sobre os artistas freelancers em produções de conteúdo, que enfrentam um fluxo de trabalho diferente das produções publicitárias, onde as escalas e os valores são distintos.
Fazer efeitos visuais em longas-metragens no sul do país é um ato de resiliência e inovação (e por que não de resistência também?). É nesse contexto que a interdisciplinaridade de cada membro da equipe se torna essencial. Aprendi com outros projetos e coloquei em prática no Noel que uma equipe pequena (no Noel estávamos em 13 ao total), mas entrosada, é mais eficaz do que uma equipe muito grande. Conhecer os limites e capacidades de cada membro é fundamental para avançarmos, pois as soluções são criadas em conjunto, não individualmente. Criamos uma estrutura mais horizontal e que promove maior interação entre os membros. Em resumo, invista na integração e na busca por soluções colaborativas. Você vai se surpreender com os resultados.
5 - Seja revolucionário, abandone o Ideal
Vivemos no sul do Brasil, distantes do Sudeste, e fazemos cinema. Embora a produção local seja reconhecida como um dos principais polos cinematográficos do Brasil, ainda estamos muito aquém de Rio de Janeiro e São Paulo. Em todos os aspectos. Não possuímos as mesmas condições de produção dessas cidades. Temos algumas estruturas, mas falta muito, desde equipamentos e ferramentas até o conhecimento de produções anteriores e o capital humano. Fazer efeitos visuais por aqui é revolucionário, então seja um revolucionário. Abandone a busca pelo ideal.
O que eu quero dizer com isso? Desapegue daquilo que dizem ser o ideal em termos de produção. Isso se manifesta naquelas frases como "o ideal/correto é usar (preencha com qualquer software considerado padrão da indústria)" ou "seria ideal termos uma câmera XYZ". Deixe isso de lado, seja um revolucionário.
Até recentemente, eu me sentia um maluco tentando fazer filmes com efeitos visuais. Continuo um pouco maluco, mas nos últimos anos percebi cada vez mais que não estou sozinho. Em 2023, o filme vencedor do Oscar de Melhor Filme, "Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo" (2022) dirigido por Daniel Kwan e Daniel Scheinert, contava com apenas 5 pessoas na equipe de efeitos visuais. Eles realizaram o filme em 6 meses com mais de 600 planos com VFX. Outro exemplo vencedor do Oscar veio do Japão neste ano, "Godzilla - Minus One" (2023), dirigido por Takashi Yamazaki, ganhou o prêmio de Melhores Efeitos Visuais com uma equipe de apenas 35 artistas. Para comparação, "Godzilla" (2014), produção dos Estados Unidos dirigida por Gareth Edwards, teve uma equipe de 1434 artistas de VFX creditados no IMDb. A diferença é gigantesca, ou melhor, monstruosa. O curioso é que o próprio Gareth Edwards ministrava um curso na FXPHD há alguns anos sobre efeitos visuais de guerrilha, para a realização de produções de baixo orçamento. Eu fiz esse curso em 2015 e me inspirou muito para os trabalhos posteriores. Faça acontecer com as melhores ferramentas e equipes que estiver à disposição. Podemos fazer muito. Com um bom planejamento e muita dedicação, podemos ir além.
Ao fim de toda produção, saímos com uma bagagem e um aprendizado muito maior de quando entramos. Nunca conseguiríamos repetir um filme, faríamos sempre de forma diferente, mesmo que o resultado fosse semelhante. Levamos os erros e acertos para os próximos projetos, tentando acertar mais. E se for para cometer erros, que sejam novos, ao menos.
Enfim, tudo isso eu aprendi com o Papai Noel, ou cheguei a essas conclusões trabalhando no filme Uma carta para Papai Noel (2023), enquanto pesquisava sobre efeitos visuais no cinema brasileiro para a minha dissertação de mestrado. Foi um trabalho incrível e o resultado é fantástico. Devo isso a minha equipe: Victória Ketzer, Roberto Scherer, Rafael Duarte, Roger Goulart, Jacques Palermo, Mateus Salviano, Marcelo Barth, André Wofchuck, Alexandre Calliari, Rodrigo Cabral, Sofia Bidarte e Laura Canavezi. E também a confiança que a produção e a direção depositaram em mim. Serei eternamente grato.
Os efeitos visuais foram responsáveis por dar vida a magia de Natal escrita por Spolidoro e Gibran e vivenciada por um elenco incrível. Se não viu, vale a pena assistir, mas uma dica, assista com uma criança junto e veja o impacto nos olhos dela. Isso motiva cada vez mais a seguir em frente.
Até mais!
Veja aqui um pouco dos bastidores da pós-produção:
Pedro de Lima Marques
VFX Supervisor Master's in Creative Industries
IMDB: https://www.imdb.com/title/tt29536981... Créditos do filme: Direção: Gustavo Spolidoro Roteiro: Gibran Dipp e Gustavo Spolidoro Produção: Aletéia Selonk Produção Executiva: Aletéia Selonk, Graziella Ferst, Marlise Aúde e Gina O'Donnell Direção de Fotografia: Bruno Polidoro Direção de Arte: Tiago Retamal Direção de Produção: Tito Mateo Produção de Elenco: Andrea Imperatore Pesquisa e Preparação de Elenco Infantil: Adriano Basegio Figurino: Daiane Senger Caracterização: Luana Zinn Som Direto: Augusto Stern e Fernando Efron Montagem: Pablo Riera Supervisão de Efeitos Visuais: Pedro de Lima Marques Desenho de Som: Kiko Ferraz, Ricardo Costa e Chrístian Vaisz Música Original: Arthur de Faria
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